A Barata

Até hoje, eu nunca tinha me imaginado como uma pessoa louca, descompassada. Excêntrico, talvez; diferente das outras crianças no colégio, de fato; nunca entendi o porquê de correr atrás de bolas, trocar socos e xingamentos. E até hoje tenho dificuldades de entender o que há de tão errado comigo. Quando me olho no espelho vejo o semblante de alguém normal, mas nos reflexos dos olhos das pessoas meus contornos parecem tomar formas diferentes, distorcidas. Por vezes imagino perceber nos outros a tensão nos músculos, os pelos ouriçados, o leve franzir dos cenhos quando finalmente me torno o centro das atenções, e anos de prática me ensinaram a lidar com isso sem mais recorrer a simulações toscas de enjoos e engasgos.

Me parece mais fácil, agora, encarar o passado e todos os momentos que compartimentalizei ao longo dos anos: uma criança me chutou os culhões, sem más intenções, no meio de um exercício de prática de futebol, e eu exagerei os efeitos da dor, afim de brincar com a situação, rolando no chão com uma careta exagerada e dizendo “Assassino, assassino”. O menino chorou desesperadamente, sentindo-se terrivelmente ofendido. Ninguém riu. Anos mais tarde, já em outra cidade e outro colégio, um amiguinho cujo nome e fisionomia me escapam da memória surge na minha frente para um anúncio muito importante: Ricardo, não mais eu, era seu melhor amigo a partir daquele dia. Ao perguntar por um motivo, fui agraciado com a verdade crua das respostas das crianças, “Porque ele é mais legal.”. Lembro de a sombra do rapaz sumir da minha frente e então mais nada. Um piscar de olhos me arremessa de volta para minha juventude, quando Renan, um demônio estúpido mais forte e cruel do que eu, farejou meu medo e tomou minha vida de assalto, forçando seus caprichos e humilhações diárias em troca de uma aparente superioridade, sempre sob a promessa constante de violência brutal caso uma ordem fosse desobedecida, um xingamento respondido à altura. Mas o que mais me dói é a memória do rosto de Juliana, uma antiga colega que agora penso ter sido apaixonada por mim, assistindo a um desses episódios deploráveis de ofensas terríveis e tentando esconder a raiva estampada em seu rosto. Raiva não de Renan, meu grande professor de todas as coisas tristes da vida, mas de mim. De mim, por nunca ter reagido, nunca ter lutado a grande luta. Nem mesmo desferido um patético soco.

Há muitas mais de onde essas vieram, e nos tempos quando ainda conseguia conversar com alguém geralmente arrancava risadas, ainda que irônicas, quando dizia que estas eram minhas únicas memórias de vida. Eu sei que viajei um bocado, tenho ciência das paisagens românticas que já vi desabrochando sobre o entardecer dourado e rosa deste mundo, mas estas são as minhas únicas memórias e não há como fugir disso. Tanto que não me preocupo mais sobre ter aproveitado as oportunidades que sinto ter desperdiçado, pois tenho em mente agora que vivi a vida que tive de viver.

Há sete meses permaneço trancado dentro do meu apartamento, localizado em uma área nobre do Rio de Janeiro, trocando confidências somente com meus livros, meus filmes e meu gato. Já era de meu costume livrar-me de festejos e aglomerações, de arranjar desculpas para me ausentar dos bares marcados pelos colegas de trabalho, até chegar ao ponto extremamente confuso de não ser mais convocado para atividade alguma, por ninguém. Confuso porque me fazia sentir ao mesmo tempo confortável e enervado. O nervosismo, então, foi dando lugar à paranoia, e desde que perdi meu emprego por faltar mais de quatro dias seguidos em meio a um surto psicótico que me rendeu acamado, febril e delirante, não encontrei motivo bom o suficiente para atravessar aquele portal e pôr os pés novamente naquela sarjeta imunda e sem fim, tantos andares abaixo.

Tomava banhos de sol na varanda enquanto saboreava meu café quente logo pela manhã, finalmente pude começar a ler a enorme coleção que venho nutrindo há tantos anos e continuei recebendo encomendas quase diárias dos suprimentos necessários para manter a constituição, minha e do gato, que entre um descanso e outro apenas arranjava tempo para se espreguiçar e caminhar lentamente atrás de um novo lugar para adormecer em paz. Em suma, minha vida vinha seguindo o seu aparente rumo natural, ainda que moroso e fundamentalmente solitário. Eu já arriscava, inclusive, encarar minha separação do resto do mundo com certo orgulho, enxergando em minha dedicação alguma espécie de talento prodigioso. Minha vocação. E então a loucura tomou conta.

Os últimos dias têm sido quentes e secos, o barulho da cidade abaixo e ao redor, incessante. Há duas noites, enquanto terminava de lavar a louça da janta, pude notar pela visão periférica o trajeto que um diminuto ponto negro percorria na parede da cozinha, a uma jarda de distância. As lembranças ainda me são claras, imediatas, tanto do som da água despejada pela torneira batendo no latão da pia abaixo quanto da luz fluorescente esverdeada, o brilho mais intenso, mais branco, reluzindo na carapaça lisa de uma pequena barata. Lembro de ambos imóveis, apenas aquelas antenas asquerosas arriscando revelar-se com vida, erráticas, minúsculas e finas como fios de cabelo negro. Procurei de imediato por algo em meu alcance que pudesse usar para esmagar aquela pequena aberração, mas nada me pareceu de útil a tempo de a barata voltar a se mover, agora correndo apressada em direção dos armários suspensos na parede da cozinha e do estreito vão entre a madeira do móvel e o ladrilho. Com a mesma mão que segurava a esponja encharcada tentei socá-la, sem sucesso. Fiquei apenas com o punho avermelhado e dolorido, enquanto a barata refugiou-se na escuridão inalcançável do vão, uma verdadeira fenda diante de sua pequeneza. Xinguei e imaginei a podridão bolorenta onde a criatura havia adentrado, mas enfim terminei minha tarefa e desisti de esperar por qualquer sinal da barata, depositando toda a responsabilidade de arcar com aquela situação em meu gato, que vez ou outra já tinha se mostrado capaz de lidar com pestes maiores e mais horripilantes que aquele pequeno ponto preto, do tamanho de um botão, deveras inofensivo.

Passei o resto da noite na sala assistindo a programas desinteressantes, mas de olhos e ouvidos atentos, pois mais de uma vez pensei escutar sons inusitados vindos da cozinha. Nada além pode ser descrito do que estalos secos, como finas ripas de madeira envergando até romper suas fibras. A partir do som, que se repetiu espaçadamente por algumas horas, eu pude imaginar finos ligamentos de carapaça, longos probócitos tentaculares e patas gélidas repletas de pelos. Quem me deixou ainda mais nervoso, por sua inquietude nada habitual, foi também meu gato, que se aninhou em meu colo e, tal como eu, encarava a penumbra além do portal da cozinha toda vez que aquele som se repetia. E agora agradeço a tudo o que for de mais santo, neste mundo e no outro, por este gato, pois foi ele quem, com sibilar agressivo, me acordou de uma soneca desmedida sobre o sofá da sala a tempo de testemunhar aquela dança das sombras escapando da cozinha, duas hastes longas e finas dardejando a ermo em direção da sala, fazendo lembrar nada além de um gigantesco par de antenas. Até então ainda tomado pelo torpor do sono, balbuciei alto qualquer maldição ininteligível que pareceu interferir diretamente naquela visão grotesca e com um rápido recuo, em um piscar de olhos, aquelas coisas não mais podiam ser vistas.

Levei um certo tempo até criar a coragem necessária para levantar do sofá e caminhar até a cozinha, ligando a luz assim que me vi dentro daquele corredor estreito e no fim sem encontrar qualquer coisa fora do comum. Permaneci imóvel, encarando cada canto, cada superfície, pensando sobre finalmente tomar uma decisão quanto a minha atual situação de isolamento autoimposto, divagando sobre as distâncias entre as realidades objetivas e subjetivas que minha mente parecia ter criado depois de tanto tempo forçada a trabalhar com as mesmas visões, os mesmos sons e estímulos. De súbito uma onda de tristeza me abateu e tão logo após me certificar da segurança do local, caminhei lentamente em direção do meu quarto, arrastando os pés e chamando pelo gato para que me acompanhasse, estalando os dedos de uma mão.

Naquela primeira noite fui assolado por demônios em meus pesadelos, visões nefastas e distorcidas de lugares familiares, próximos. Mas o que certamente mais me marcou foram os devaneios envolvendo deformações corpóreas e mutilações que punham em xeque os limites da carne. Acordei sobressaltado, encharcado de suor e arfando ruidosamente enquanto me sentava sobre a cama e massageava o gato, que tão logo despertou de seu próprio sono e veio me acariciar de corpo inteiro, ronronando baixinho. Ainda me é fresca a memória do último sonho daquela noite, o que me fez acordar com tamanha violência. Nele, me encontrava parado de frente para a cozinha, envolto de uma escuridão quase total. Aos meus pés, meu gato corria em disparada, alternando entre dois pontos: onde eu permanecia imóvel, de pé, e algum lugar mais distante no apartamento às minhas costas. Ele ia e voltava, ia e vinha, incessantemente, até que finalmente decidi olhar por cima do ombro e acompanhar seu trajeto sem sentido aparente. E ao mirar a distância restante do apartamento até a parede oposta, meu estômago revirou com a visão daquele par de olhos terríveis, selvagens, me encarando de dentro do meu quarto através da porta entreaberta. Da escuridão daquele quarto meu gato partiu em disparada vindo em minha direção, e uma mão com dedos longos e ossudos surgiu das trevas e agarrou lentamente a madeira da porta.

Mesmo após acordar, não tive tempo suficiente para me recuperar. Envolvidos na escuridão da noite, no silêncio sepulcral da cidade, meu bichano e eu fomos surpreendidos pelo som de batidas arrastadas na porta. Permaneci imóvel, em silêncio, sorvendo aqueles segundos como se fossem horas, enquanto o gato se eriçava e rosnava ferozmente. Eu sei do potencial criativo que uma mente exausta é capaz, em especial logo após um sono perturbado, e mais de uma vez em minha vida me encontrei em momentos de total confusão quanto a materialidade do mundo ao meu redor, em situações parecidas. Mas algo naqueles ruídos lancinantes despertava uma qualidade diferente de qualquer outra alucinação que jamais me dei conta. As características daquele som, daquele arranhar da madeira, da tinta antiga e gasta, da textura da porta sendo interferida violentamente, tudo aquilo me pareceu complexo e alienígena demais para justificar como apenas criações de uma mente confusa. Foi então que decidi tomar iniciativa, levantando da cama e caminhando em direção da porta do quarto.

Tão logo comecei o lento percurso, fazendo o piso de madeira ranger suavemente a cada passo, o som cessou. Me confirmaria a loucura que tanto suspeito se dissesse que não ouvi imediatamente o tamborilar pesado de incontáveis passos do outro lado da porta. Segurei a maçaneta e, suspirando alto, a girei com rapidez e parti para o corredor com violência, afim de tanto assustar qualquer entidade que não contasse com minha astúcia quanto que para elucidar aquele mistério de uma vez por todas.

A poucos metros de distância, estirada no chão da sala. A barata havia crescido, de alguma forma, chegando às dimensões aproximadas de um cão de médio porte. Seu corpanzil reluzente e bulboso refletia as luzes da cidade que invadiam o apartamento escuro em um espelho negro. Suas presas mastigavam o ar e pingavam um líquido claro e viscoso, que já formava uma poça no chão logo abaixo. As antenas apontavam para todas as direções. Eu desmaiei, e acordei horas mais tarde com o calor do sol da manhã e nenhum sinal do monstro. Ao fazer força para descolar as costas doloridas do piso amadeirado, me assustei terrivelmente com um guincho alto e repentino. Apenas de lembrar, sinto meu estômago revirando, meu coração quase escapando pela boca.

Meu pobre gato, meu fiel companheiro, feriu-se gravemente em algum momento ao longo da noite. Ele jazia deitado a poucos metros de distância, choramingando em cima de uma poça de sangue. Sobre sua coxa esquerda, exposta como que em um pedido de socorro, duas feridas perfuradas reluziam, cobertas de sangue coagulado. Nesse momento, ouso abrilhantar o relato com caprichos de prosa, pois realmente não lembro de como deixei o apartamento com o animal ferido em braços. Como em uma viagem astral, assisti meu eu percorrendo a distância até a emergência veterinária mais próxima e implorando por ajuda. Me disseram que o estado do meu guardião é estável e que uma recuperação total é prevista. Não sei o que restaria de mim, com este gato se perdendo em uma circunstância tão aterrorizante. Tive que mentir para os médicos, contando de um acidente fictício graças a uma queda de um lugar alto, e a julgar pelas suas expressões acredito que ganhei a confiança deles. Muito provavelmente fora o desespero com o qual entrei no local, ainda de roupas de dormir e descalço.

O meu estado deplorável e o acidente terrível com o gato me puseram a novamente pensar sobre as condições na qual vivo há tanto tempo, e lembro de promessas enfáticas de mudança, de assumir responsabilidade e procurar qualquer tipo de tratamento adequado a alguém que chegasse ao nível de pôr uma vida em risco graças a visões e devaneios alucinados. Entrei em contato com uma médica psiquiátrica e marquei uma consulta para semana que vem, me sentindo bastante realizado. Logo depois vasculhei pelo apartamento inteiro por qualquer prova da existência daquele monstro asqueroso que havia nos enfrentado na noite anterior, sem sucesso. Me condecorei com uma medalha imaginária, por conseguir distinguir o real do sonho e por perceber a tempo a necessidade de ajuda. O sol sumiu por detrás dos morros altos que defrontam a minha janela e passei a noite procrastinando em busca de aliviar a mente e ignorar qualquer dúvida que surgisse em relação ao estado de saúde do meu bicho de estimação. Tão logo o noticiário da madrugada surgiu na televisão, meu corpo desligou e adormeci exausto no sofá da sala.

Engraçado como as coisas são. Lembro agora de mais uma memória da juventude, algo tão antigo e tão marcante que orquestrou um efeito justamente contrário, mascarando sua presença em meu subconsciente e se escondendo em meio a tantas outras lembranças, ainda que sempre forçando em meu âmago um distinto e paralisante pavor de insetos. Sou uma criança minúscula, há pouco um bebê. Uma barata voa para dentro da casa pela janela aberta em uma noite quente e aterrissa no meu braço. Ela caminha rapidamente para dentro de minha boca. Eu a engulo.

O céu amanheceu bizarro esta manhã, o seu calor me despertando quase que imediatamente após os primeiros raios adentrarem pela janela da sala. Em meu braço percebo uma pequena ferida coagulada, um rasgo na pele que, ao ser forçado, revelou-se profundo e dolorido, penetrando no músculo. Ao longo do dia inteiro sinto uma coceira por debaixo da pele, incessante, que misteriosamente parece mudar de posição, percorrendo diferentes partes do meu corpo. Me deparo rindo por minutos a fio de frente para o espelho, pois isso me faz pensar na barata.