A Torre

Somente após a enfática cobrança do doutor Renfield, além de inúmeros debates silenciosos com minha própria sombra, é que me sinto confortável o suficiente para descrever em prosa os segredos que guardo na memória. A solidão aqui é perversa, e a vida tornou-se uma grande punição. Todos que me rodeiam pregam, efusivos, quanto às qualidades de viver e existir, mas não fazem ideia da ignorância na qual escolheram meandrar. Sinto-me perdida em meio à crianças tolas, que lutam para me acorrentar em sua estupidez, tendo já realizado o que há para além deste corpo, desta vã sensação de importância que os médicos e enfermeiras teimam em tentar resgatar. Posso falar mais de mil vezes, mas percebo que jamais entenderão, que a visão que tenho da janela do meu quarto vai além dos jardins bem cuidados e dos campos que cercam este sanatório, e se posso contribuir com alguma coisa para este mundo cinzento é com a certeza de que não estou louca. Se não de minha própria boca, então, que façamos valer o peso da palavra escrita e do entendimento que a poética decerto é capaz de trazer.

Faço deste o sumo de meu testamento: Há um espaço entre os espaços, um limiar entre a cortina prateada deste mundo e o que há além. E eu apenas fui corajosa o suficiente para perscrutá-lo.

Desde tenra infância, me recordo habitando estas regiões da Providence vitoriana. Caminhava pelas avenidas largas e admirava as frondosas fachadas dos casarões, que pareciam tão antigos e cheios de história e significado, que poderiam muito bem ser confundidos com quaisquer outras formações geológicas específicas daquele solo úmido, arroxeado. A casa de minha família era uma das mais elusivas, distante dos bairros mais abastados, mas pertencente a um imenso lote de beleza natural inigualável. A paisagem bucólica que me desafia, além da janela, nesta casa de recuperação em Letchworth, esmaece perante as minhas memórias como uma pintura de um estudante de faculdade decerto deve se sentir perante às obras-primas de Michelangelo. Lembro de uma infância sorridente, onde meus primos e eu brincávamos e corríamos por inúmeros córregos, cachoeiras, bosques e clareiras, que meu querido avô contava terem sido esculpidos na natureza selvagem pelos próprios índios originários desta terra, centenas de anos antes.

Minha família sempre foi muito grande, muito unida e carinhosa. Graças aos anos de trabalho em minas de prata descobertas pela imensidão do Alaska indomado, o pai de minha mãe e seu achado valioso deram início a uma verdadeira era de ouro para a nossa Casa, que aproveitou do melhor que a riqueza poderia oferecer. Os motivos para festividades eram constantes, repletas de comidas exóticas e vinhos de valor inestimável; os automóveis mais deslumbrantes a desfilar pelas ruas de toda Providence teimavam em ser os nossos; fomos uma das primeiras residências a possuir eletricidade em toda a região, e os aniversários das crianças pequenas tornavam-se verdadeiros eventos, dignos das capas dos periódicos. A influência de meu avô começou a ser sentida nos mais diversos aspectos na região, sobretudo na política. Foi com surpresa, porém, que nos foi noticiado o falecimento do bom homem, acertado por um carro desgovernado enquanto caminhava pela calçada, de noite, voltando para casa.

Sua caridade não conhecia limites, e o seu trabalho em cuidar para que cada descendente desfrutasse de sua riqueza foi impecável. O que mais nos afetou, de cara, foi o impacto que sua ausência causou em minha avó, sua esposa. A pobre mulher, antes vivaz e faceira, agora parecia ter abandonado a vida; percorria pelos corredores da grande mansão, solitária, sempre à noite, envolta de vestes negras e de rosto protegido por um véu cinzento. Os meses se passaram sem que a víssemos novamente, até que a notícia de sua morte acometeu a todos. Minha mãe nunca admitiu, mas com tempo descobri que aquela doce senhora, antes tão alegre e espirituosa, havia partido de madrugada em direção aos bosques que circundavam nosso terreno e se enforcado.

Minha infância seguiu sem grandes eventos, ainda que estas perdas tenham causado transformações dramáticas tanto em minha formação quanto nas mentes de meus jovens primos e primas. Ainda que nossos pais se esforçassem para que as festas fossem frequentes e maravilhosas, a maioria das noites passávamos em claro, escutando uma sinfonia de choros desesperados e gritos de horror, quando eventualmente um terror noturno nos tomava o sono. Foi pensando, provavelmente, em nos livrar desta maldição de tola cobiça do luto e da morte, que nós fomos presenteados em determinado Natal, quando já havia completado doze anos de vida, com a sorte mais adorável de bichinhos de estimação. Uns ganharam gatinhos dóceis e manhosos, que miavam alto por qualquer motivo, enquanto outros foram agraciados com os filhotes de cães mais felizes e animados os quais já conheci. A minha cadela labradora chamava-se Lucy, e eu a tratava como uma verdadeira donzela, a paparicando e escovando seu pelo alvo como que numa obsessão, para o desespero de minha mãe. Por sorte, meu rendimento nos estudos não foi atrapalhado pelo presente maravilhoso, que até hoje me é motivo para lágrimas de felicidades idas.

Corríamos juntas pelo campo da propriedade, brincando na grama florida da primavera e nadando nos riachos no alto verão. No outono, rolávamos pelo grande tapete de folhas secas dos jardins e pomares, e no inverno gostávamos de dormir abraçadas no tapete persa do grande salão, nos aquecendo à luz da lareira, sempre vigiadas por nossos pais. Foi como a irmã que nunca tive, e em poucos momentos nesta vida me senti tão amada e feliz.

Vivemos uma vida boa juntos, minha família e minha labradora companheira, e ao longo da minha juventude, aquelas distantes memórias de riso e amor irremediáveis pareciam ter voltado, como se nunca tivessem nos deixado. Foi próximo de meu vigésimo aniversário, perto da conclusão de meus estudos, com o prospecto de ingresso nalguma faculdade de renome na Nova Inglaterra, quando nos foi revelado o que todos temiam, mas jamais permitiram expor: os espólios de meu avô conseguiram nos sustentar até determinado ponto, mas agora o montante estava próximo do fim e, por consequência, a nossa despedida daquela casa e daquelas terras, onde tanto havia acontecido e nos marcado, era eminente.

Todos nossos planos foram adiados, enquanto tentávamos descobrir o que fazer de nossas vidas. Não demorou muito para que meus pais encontrassem uma nova fonte de renda e um novo lugar para chamarmos de lar. Ele continuaria com os esforços em um dos empreendimentos da família, administrando uma filial da siderúrgica de meu avô em Nova Iorque. Minha mãe havia encontrado uma oportunidade de voltar a lecionar para o ensino básico, e me foi assegurado que minhas inclinações artísticas teriam seu espaço e liberdades garantidos em nosso recomeço. A ideia de deixar para trás toda aquela beleza natural me parecia impensável, mas nunca me permiti tais anseios frívolos e de pronto concordei em auxiliar meus pais naquela nova etapa em nossas vidas.

Foi durante o processo de mudança, porém, enquanto trabalhávamos ao longo de semanas para organizar tudo o que de fato levaríamos conosco e o que venderíamos para criar uma poupança inicial de segurança, que encontrei um estranho envelope antigo, de papel amarelado e amassado, já aberto, escondido entre duas ripas de madeira no armário de minha mãe. Estranho por conta de seu esconderijo, de seu estado avançado de deterioração e por logo notar em seu verso a caligrafia de minha falecida avó. Quase realizei o impulso de chamar pela minha mãe e entregá-la o documento, não fosse um aviso escrito em inglês claro, sob a marca de um antigo lacre de cera já destacado: “Para minha querida neta Amanda.”

Encarei o envelope pelo o que pareceu muito tempo, perdida nas implicações confusas que aquele documento trazia. Por que minha mãe me ocultou estas últimas palavras de minha avó, sabendo o quanto eu a amava e por quanto tempo sonhei em reaver qualquer contato com ela, por mais macabro que seja um relato póstumo. O que haveria de tão perigoso naquela mensagem, que merecia permanecer escondida e esquecida por mais de uma década em um lugar que eu jamais imaginaria encontrar. Decidi retirar o papel que havia dentro do envelope e ler a mensagem endereçada a mim, há tantos anos. Nela, minha avó dizia:

Não tema a vida, tão cheia de amores, pois a morte é só o princípio. Um grande respiro que todos devemos dar, antes de emergir do outro lado. Mergulhe nas trevas. Siga o caminho de pedra que leva até a torre. Não tenha medo. Mergulhe.”

Sinto agora o mesmo efeito que aquelas palavras me surtiram pela primeira vez, tantos anos atras; um raio percorrendo pela espinha, enquanto o estômago parece ter congelado. Entendi, naquele mesmo instante, o porquê de minha mãe querer esconder aquela carta por tantos anos. A julgar pelo estado do documento e o material daquela mensagem, deve ter sido algo produzido pouquíssimo tempo antes de seu suicídio misterioso, e com certeza teria sido algo que perturbaria a mente já debilitada de uma jovem menina, tomada pela tristeza e luto. Nunca revelei a descoberta daquele dia para minha mãe, simplesmente guardando a carta no meu vestido e continuando com a mudança.

E foi como se uma maldição tivesse sido rogada, pois em menos de uma semana após pôr os olhos no conteúdo daquela carta, a minha doce Lucy veio a falecer subitamente, por conta da velhice avançada. Foi uma dor excruciante, um sofrimento terrível que me recuso a discorrer sobre em maiores detalhes. As semanas que se seguiram foram um pesadelo encarnado, repletos de uma dor que por nada parecia oferecer trégua.

E qual não foi minha surpresa, quando na décima terceira manhã após sua morte, escutei um choro peculiar e os sons de garras arranhando a madeira da porta principal? Disparei da cama e desci as escadas em direção ao primeiro andar, onde meus tios se debruçavam para além da porta aberta, cochichando algo em meio à penumbra, que ainda não havia sido penetrada pelos raios de sol da manhã. Ao alcançar o nível do solo, perguntei sobre os estranhos sons que pensei ter ouvido, sons que me lembravam minha doce e fiel companheira, quando meu tio abre caminho para que Lucy, em carne e osso, desfilasse para dentro da casa e caminhasse lentamente em minha direção. Até hoje lembro do espanto de todos, da estranheza daquela visão, mas igualmente do amor irrefreável que senti ao reencontrar minha grande amiga. Não me permiti questionar aquelas visões, aqueles toques, que pareciam todos reais demais para serem apenas um sonho. Meus tios, incrédulos, deixei ainda estáticos no primeiro andar, enquanto levava a dócil cadela para o meu quarto. Deitamos juntas, como costumávamos fazer nos seus últimos dias, e me pus novamente a dormir, esperando me libertar daquele sonho, tão feliz e ao mesmo tempo tão perturbado. Quando acordei, lá estava ela, fazendo uma festa.

Ao longo da semana, todos tentaram conversar comigo sobre o que aconteceu com Lucy, mas me recusava a responder além do que julgava como necessário. Queria apenas viver aquela magia e ignorar qualquer semblante de bruxaria e demonismo que aquele mistério poderia sugerir. Mas enquanto aproveitava as manhãs e tardes com minha labradora, não pude deixar de perceber que, certo tempo após o pôr do sol, o animal simplesmente sumia de vista e retornava para a casa apenas na manhã seguinte, com o pelo sempre repleto de terra e sujeira.

Foi então, numa noite de lua cheia, que decidi ignorar os gritos desesperados de minha versão infantil, que lutava para ignorar qualquer consequência daquele verdadeiro milagre e apenas deixar-se levar por um suposto amor além-vida. Não tirei os olhos de Lucy durante o dia inteiro, e quando o mundo escureceu, pontual como um relógio, a cadela partiu em retirada, em direção à floresta da propriedade, que se mostrava mais sombria a cada minuto. Permiti que Lucy avançasse uma boa distância, tomando cuidado para não despertar qualquer suspeita no animal e, porventura, perdê-lo de vista. Logo notei que o caminho que percorremos, cada vez mais profundo na mata densa, era ladeado por indícios de uma trilha devidamente cortada em meio à vegetação, e quando passamos por uma região onde faltava uma cobertura nas copas das árvores acima, o luar refletiu nas lajotas de pedra que delimitavam nosso percurso. Imediatamente, lembrei-me da mensagem macabra de minha avó e, por mais que lutasse contra a ideia, parecia que agora tudo fazia sentido.

Não lembro por quanto tempo caminhamos na natureza, em meio às sombras e ruídos noturnos, até nos depararmos com uma grande estrutura ciclope, feita de pedra. Uma torre emergia de uma clareira perdida no meio da floresta, e quando olhei para o céu, a luz das estrelas parecia alinhar em direção da edificação monstruosa, que não oferecia qualquer indício de estilo arquitetônico que eu jamais tenha reconhecido antes ou depois.

Lucy não hesitou nem por um segundo, marchando solenemente em direção de uma abertura na torre, grande o suficiente para que nós duas penetrássemos no prédio, que mostrou-se completamente vazio, sem qualquer proteção contra aquela visão demoníaca do céu e dos astros. A cadela deitou lentamente no chão de pedra fria, abaixou a cabeça e, então, cessou qualquer movimento. Me ajoelhei ao seu lado, para impedir que ficasse em contato com aquela superfície gélida por muito tempo, e gritei com o susto que levei ao tocar o seu pelo e sentir absolutamente nada. Minha mão atravessou pela superfície antes física daquele corpo, como se Lucy fosse nada mais do que um pensamento, uma ilusão ótica criada com espelhos e fumaça. Comecei a tremer de pavor, sem conseguir compreender o que meus sentidos tentavam me passar, quando senti algo inacreditavelmente gelado repousando sobre meu ombro direito. Quando consegui encarar, reconheci os contornos inacreditáveis de uma mão que, em algum momento, pôde-se dizer ‘humana’. Minhas pernas bambearam e me senti prestes a desmaiar quando, da escuridão atrás de mim, reconheci uma voz que não ouvia há muitos anos.

Não tenha medo…”, minha querida avó disse, e naquele momento me pus a chorar copiosamente. Não por tristeza, porém, mas de alegria, porque tinha descoberto que não precisava mais temer um fim que simplesmente não havia. Que a morte era apenas o princípio.

Não me recordo de muita coisa que aconteceu após aquela noite, apenas que Lucy continuou a me visitar diariamente, até nos mudarmos de estado e deixarmos a magia daquela terra para trás. Tendo admitido tudo isto, quero reforçar o uso deste documento por escrito, avaliado pelos meus médicos e enviado para o juizado como prova de minha sanidade. O conhecimento oculto que carrego comigo em vida me permite admirar o equilíbrio entre a existência e a morte de uma maneira única, que julgo permitir-me de uso, quando em momentos de extrema necessidade.

Reforço que foi por isso, e tão somente isso, que me submeti a cenas tão grotescas e perturbadoras tais como foram descritas nos jornais de todo o estado e, imagino, de todo o país. Admito, por meio deste, que violei o mausoléu de minha família e resgatei o cadáver de meu filho recém falecido de seu sono de pedra. Admito que invadi o território de minha antiga propriedade, agora pertencente aos Neugebauer, mas somente para reaver o acesso daquele caminho de pedra perdido na mata e da estranha torre, que me aguarda com suas indescritíveis maravilhas. Admito que cometi todos esses delitos por conta do amor de uma mãe pelo seu pequeno filho, tão covardemente acometido pela cólera e tomado deste mundo sem a chance de ser feliz e amar, como é devido!

Agora me resta clamar pela misericórdia da justiça dos homens, pois o tempo está se esgotando. Faz duas semanas que permaneço trancafiada neste sanatório, e não sei quanto tempo ainda resta para a ressurreição de meu amado Caleb. Por tudo o que é mais sagrado, vos imploro por compaixão para com uma velha mãe, que apenas quer voltar a ver seu filho!

O Devorador de Sonhos

Capítulo 1 – Chave e Fechadura

Jéssica lutava contra o sono, ainda que sem um motivo aparente. A casa de seu pai a esperava em outro município e o trépido ninar do ônibus, ainda que atormentado por eventuais solavancos nos buracos da estrada, operava verdadeiros milagres em suas pálpebras enegrecidas; nos nós de seus músculos. Podia perceber as sombras turvas tentando se encontrar, fechando sobre os olhos cansados, mas sempre se esforçava para afastá-las e retomar a plena consciência – geralmente em caretas exageradas que repuxavam toda a carne do rosto e, quase sempre, faziam rir de escárnio um casal de crianças sentadas mais à frente.

Um arruaceiro em um carro prateado surgiu como que do próprio ar, colou na lateral do ônibus e tentou uma ultrapassagem, quase colidindo de frente com uma carreta que vinha correndo pela via paralela. As buzinas, os gritos desesperados e o balanço violento do veículo pareciam todos uma última grande tentativa de expurgar da mulher aquela exaustão de semanas, lançando um jato de adrenalina que correu por suas veias como um raio. O caminhão continuou seu percurso, berrando ferozmente. O carro desviou a tempo, mas não sem pagar um preço; atirando-se de corpo inteiro em uma vala lamacenta. Ao que as famílias se consolavam e um discreto casal jovem deixava escapar um riso nervoso, extremamente mal-visto pelo restante dos passageiros, Jéssica se espreguiçou e deixou correr um vagaroso bocejo. Esbarrou com o cotovelo no braço de um senhor irritadiço ao seu lado e pediu desculpas, que foram prontamente ignoradas. Virou-se de costas para o velho e encarou a paisagem bucólica do outro lado da janela. Já era fim de tarde, e o sol se punha além do mar estático de morros e colinas verdejantes, enquanto grandes nuvens brancas despontavam no céu rosado.

“Que belo dia para morrer… Aliás, que dia é hoje?”, ouviu em sua mente, antes de reconhecer a própria voz ecoando em seus pensamentos. “Mas, engraçado… A voz da consciência não tem timbre, caráter. Como saber se ela é mesmo a minha…”

Um ônibus parou no ponto e dele saltou Jéssica, já erguendo o guarda-chuva semi-aberto. A fina garoa que insistia desde manhã salpicou sua mão esquerda, firmemente agarrada em uma sacola de mercado cheia, pesada. O veículo partiu em um escândalo e a jovem mulher caminhou a passos largos em direção ao grande prédio. Telões digitalizados exibindo propagandas e diversos avisos desenhados com luzes de neon resplandeciam no frio da noite e tingiam a cidade com um caleidoscópio de cores e formas, forçando no mundo novos caminhos, antes ocultos, delimitados por sombras, becos e corredores. Jéssica odiava a cidade e morria de medo do que sentia espreitando na escuridão — toda uma sorte de horrores indizíveis. Por isso correu para dentro do saguão de entrada sem hesitar e exclamou para segurarem e impedir o fechamento da porta do elevador.

Algum tempo depois, já na segurança do apartamento, pôde ouvir os ruídos de chave e fechadura vindos da entrada. Logo reconheceu a presença sempre contagiante de Mathias, que assobiava uma melodia alegre e pisava vagarosamente, como se marcasse o ritmo de uma canção. Jéssica apenas sorriu, permanecendo imóvel e em silêncio, confiando nos instintos dele. Não demorou muito para que o homem lançasse a cabeça para fora da janela e a encontrasse enrolada numa manta felpuda. Em seu rosto, uma raiva paternal que fez a mulher cerrar os olhos e rir baixinho.

“Agora é oficial, você ficou completamente louca!”

Jéssica riu alto, enquanto Mathias permanecia com a metade do corpo para fora da janela, com uma mão estendida e lutando para não transparecer o desconforto naquele frio cortante. Ele tentou resistir, mas se viu refém novamente daquele sorriso, que tanto dizia ser apaixonado e, ao invés de acompanhá-lo para dentro do apartamento confortável e caloroso, Jéssica abriu espaço para que seu grande amor sentasse ao seu lado na estreita laje de cimento que despontava do parapeito da janela e se lançava para uma queda livre de muitos andares. Diante deles, a cidade adormecida cintilava, multicolorida, como as estrelas deveriam estar fazendo naquele exato momento, além da cúpula de nuvens cinzentas. Se abraçaram por um longo tempo, ela descansando a cabeça no peito dele, antes que ousassem quebrar o silêncio. Uma motocicleta cruzou a rua logo abaixo, fazendo um estardalhaço.

“A pesquisa foi aprovada. Conseguimos os fundos que faltavam.”, ela deixou escapar, como se fosse apenas mais uma eventualidade.

Mathias arregalou os olhos e tomou a jovem pelos ombros, para encará-la de perto: “Aquela farmacêutica, finalmente?”

“Eles chegaram perto, mas continuaram com aquela oferta ridícula. Tenho até vergonha de falar disso, mas… Foram os militares.”

Mathias franziu o cenho e Jéssica assentiu em silêncio. Ele percebeu a seriedade da situação e tão logo tentou desarmá-la com uma risada de escárnio: “Bom, pelo menos alguém consegue dar valor para o teu trabalho.”

“Só nos resta saber, a que custo…”, logo respondeu Jéssica, ao escanear o horizonte tortuoso e confuso, os recortes sombrios dos prédios que pareciam com os dentes afiados de uma enorme boca. Mathias apertou o abraço, e ela sorriu.

“Vai ficar tudo bem. Aliás, tem certeza de que isso daqui é a comemoração que você planejou para este momento tão aguardado? Quer cair lá embaixo e ser o primeiro estudo de caso do programa?”

Eles se encararam novamente e riram baixinho. Jéssica suspirou, antes de revelar: “Acredito que seria a única forma de voltar a fazer parte, já que a pesquisa não me pertence mais.”

O fogão estalou alto, quando Mathias ligou o bocal sob a grande panela cheia d’água. Ele se esforçava, na ponta dos pés, para alcançar o pacote de macarrão no alto da prateleira, enquanto Jéssica assistia à cena do alto de um banco, de frente para a bancada que separava os ambientes da cozinha e das salas. “E quanto tempo você deve ficar fora?”, perguntou ele.

“Ainda não sei, mas pela descrição da cuidadora a situação é seríssima. Não tinha outro jeito.”

Mathias finalmente conseguiu puxar a caixa de macarrão e rumou em direção do fogão: “Você podia ter esperado, avaliado melhor toda essa situação, …”

“Não tinha outro jeito.”

“… com mais calma.”

“Não tinha outro jeito!”

Jéssica por pouco não se exaltou, apenas forçando na voz e na compleição uma resistência quase tátil, mais firme que um muro de pedra, e Mathias logo notou os limites de seus poderes. A água começou a borbulhar. Ele assentiu e tratou de preparar a refeição. Jéssica continuou: “O meu pai é um vegetal, que não consegue limpar a própria bunda, Mathias. Sempre soubemos que este momento chegaria.”

“Oportuno, como sempre…”, ele respondeu, entre os dentes, enquanto misturava a massa submersa na grande panela de aço com um garfo. Sentiu o vapor quente queimar a pele e, num movimento rápido, recolheu a mão para junto do peito. Jéssica franziu o cenho e o encarou.

“Eu acredito ter meus motivos para reclamar dele, toda uma história de desgostos. Mas você? Acho que, frequentemente, você esquece do seu lugar.”

Além do som da água do macarrão borbulhando, o mais puro silêncio. Ao longe, um carro solitário cruzou pela avenida encharcada. Mathias cerrou os punhos, e Jéssica balançou a cabeça em uma negativa, examinando os caminhos das ranhuras na bancada de mármore, antes de concluir: “Ele é tudo o que me resta, Mathias. Comecei essa pesquisa por causa deles…” Ela desviou o olhar, mirando a parede no extremo oposto da sala. “Eu pensei bastante sobre, avaliando bem a situação, e não sei o que seria de mim, se simplesmente deixasse isso passar. O que vale, tentar falar com os mortos, se eu continuo ignorando os vivos?”

No mesmo instante, ambos os corpos tremeram com o susto. O telefone pendurado na parede da cozinha passou a tocar, alto e insistente, como que com raiva. O casal permaneceu imóvel, e Mathias reconheceu no rosto de Jéssica um pavor tão profundo, que pensou ter visto apenas algumas vezes ao longo dos anos de relacionamento. Um medo que transformava o seu rosto em outra coisa — uma máscara. “Você não vai atender?”

“Eu não consigo.”, respondeu ela, demonstrando esforço, “Eu não posso.”

O telefone continuou a tocar, berrando furiosamente, seu chamado ecoando e preenchendo o local com uma presença intimidadora, sinistra. Jéssica sentiu-se enjoada. Então, cessou. De volta, o silêncio.

Jéssica se viu deitada na cama, com Mathias ao seu lado. No quarto, uma escuridão misteriosa, marcada apenas pelas luzes da cidade, que invadiam o cômodo pelas janelas entreabertas. Sentia o enjoo regressando — ou seria ‘persistindo’, e estranhou não se lembrar do restante da noite, do jantar que preparavam. Então um raio percorreu por sua coluna e eriçou os pelos dos braços com a estática, quando conseguiu discernir, pela porta do quarto aberta, os contornos de uma terceira pessoa no apartamento, a silhueta distante no fim do corredor. A figura era alta, esguia, mesclando os limites do corpo nas sombras ao redor e parecia curvar-se sobre a mesma bancada que, momentos antes, Jéssica se encontrava. A jovem começou a sacudir o corpo inerte do homem desacordado ao seu lado, sem resposta.

“Mathias… Mathias!”

A impressão de um movimento chamou a atenção de Jéssica novamente para o fim do corredor, onde a figura encontrava com o seu olhar em dois rubis faiscantes. Aquela coisa olhava diretamente para a jovem indefesa, deitada debaixo de finos lençóis e sem qualquer rota de fuga. E agora, a sombra caminhava, aos tropeços, em direção do quarto.

“Meu Deus!”, Jéssica deixou escapar, sem notar os olhos de Mathias se abrindo. Ele agarrou seu pulso com firmeza e a puxou para perto. Ele sussurrava: “Não acorde… Não acorde!”, e do portal do quarto ela ouviu um gemido; e então uma voz familiar, que seria doce, não fosse a qualidade áspera, gorgolejante, do som que, agora, vinha da beirada da cama. “Eu preciso sair…”

Foi nesse momento que Jéssica acordou. A mão do motorista do ônibus sacudindo-lhe o ombro a trouxe de volta do pesadelo terrível, que atormentou o resto de sua viagem. A jovem acordou com um grito de horror e o senhor barrigudo, que buscava apenas ajudar uma jovem adormecida, ficou pálido com o susto.

“Mil perdões, eu… O senhor me salvou. Obrigada!”

O motorista nunca soube como retribuir aquele agradecimento, enquanto a jovem recolhia seus pertences e corria para fora do veículo. A noite era fria e seca, e Jéssica pensou ter visto uma fina névoa escapando da boca a cada respiro, enquanto corria pelo terminal à procura de alguma condução que a levasse para a casa de seu pai, que permanecia a alguns quilômetros de distância.

Não demorou muito para arranjar uma carona com uma senhora caridosa, que prometia o conforto de um carro antigo, mas bem preservado. As duas ameaçaram uma conversa animada no começo, mas logo cessaram o papeado e deixaram o silêncio da noite campestre tomar conta. A grama de ambos os lados da estrada de terra batida estava alta, selvagem, com algumas poucas árvores magras exibindo suas copas tímidas. A lua cheia resplandecia, refletindo um canhão de luz prateada sobre à terra, enquanto Jéssica lutava para esquecer as visões sinistras daquele pesadelo recente, tão estranho e, em simultâneo, tão real.

Enfim, foram as colinas altas e o muro de cimento branco que a trouxeram de volta à realidade, e alertavam quanto ao final de sua jornada. Avisou a senhora e agradeceu pela hospitalidade. Saltou do passageiro, ainda lutando para calçar a mochila no ombro e apoiar a mala corretamente no solo desnivelado, e encontrou-se de frente para os portões da casa onde passou grande parte da infância e juventude, ouvindo o carro acelerando pela estrada de terra, noite afora. Uma forte brisa correu pelo campo, fazendo a grama berrar junto dos sapos e grilhos, escondidos nas redondezas. Ouviu, também, o próprio queixo, batendo em estalos altos.

Jéssica caminhou em direção do portão e logo notou o emaranhado de cadeados e correntes que envolviam as barras de ferro negro. “Essa é ótima…”, disse em voz alta, percebendo-se sem qualquer chave, trancada do lado de fora da propriedade.

Bateu palmas e exclamou, para chamar a atenção da cuidadora de seu pai, que deveria estar presente, aguardando sua chegada. Sem resposta. Foi então que, da escuridão, surgiram dois grandes cães de guarda, que correram velozmente e se chocaram com o portão, latindo ferozmente para a jovem. Um deles, Jéssica reconheceu como sendo Brutus, o pequeno filhote de pit bull que adotou tantos anos antes, agora um verdadeiro monstro, espumando saliva quente e latindo ferozmente.

“Olha só pra você, que lindo!”

Da casa, Jéssica notou luzes acendendo e uma claridade dourada diferenciada quando a porta principal se abriu. Uma senhora corpulenta caminhou apressada em direção do portão, com uma lanterna acesa em mãos, e tratou de abrir caminho em meio aos cães. “Cala a boca! Calados! Olá, é você?”

“Sim.”, a jovem falou, calmamente. “Sou a filha.”

Continua

A Dança do Fogo – Capítulo 1

Curvada sobre o volante, encharcada e checando os retrovisores obsessivamente, Sandra parecia à beira de um colapso. Ela tremia de frio e as mãos lutavam para continuar agarradas ao couro escorregadio do volante. Então uma mecha de cabelos negros absolutamente molhados caiu sobre seus olhos, cobrindo-os como cortinas. No mesmo instante, sentiu percorrer por seu corpo uma vibração estranha como se uma força tentasse penetrar-lhe as barreiras da carne. Os ombros se contorceram com uma pontada no esterno. O crânio ardeu em chamas. Gritou e, em surto, retirou as mãos do volante.  

Era uma madrugada chuvosa de outubro e dois carros colidiram violentamente em uma encruzilhada. Sandra explodiu pelo para-brisas e voou cerca de três metros, antes de aterrissar com o topo do crânio no pavimento molhado. Ela deslizou pelo asfalto áspero, tendo o seu rosto se desfazendo em farrapos, e então rastejou a esmo, estendendo as mãos retorcidas no vazio frio da noite antes que o outro carro deixasse de capotar e terminasse de ponta-cabeça, girando lentamente no próprio eixo. A chuva se misturava com o sangue e corria para dentro de seus olhos, de sua boca. Ela engasgou. As pálpebras finalmente se fecharam e ela nunca mais viu nada. E, após um breve silêncio, o ruído incessante da chuva golpeando o asfalto, o vidro e o metal passou a ser acompanhado pelo choro desesperado de uma criança.

As luzes dos prédios ao redor se iluminaram, com algumas poucas cabeças corajosas prostradas para fora das janelas. Uma mulher gritou. Na rua, do carro tombado, um homem rastejou para fora e ergueu-se com dificuldade, urrando de dor. Ele lutou para fazer sentido da situação ainda atordoado pela violência do choque e do aguaceiro que despencava dos céus. Foi quando conseguiu discernir a silhueta macabra das ferragens, o choro que partia de dentro delas e finalmente Sandra, mais distante, iluminada por um canhão de luz projetado pelo único farol remanescente do veículo arruinado. O homem mancou em sua direção e ao se aproximar o suficiente, sentiu a espinha congelar, toda sua musculatura tensionar e tremer com a visão da mulher sem rosto. Ele conseguiu reunir forças para cortar a distância que faltava, se agachar dolorosamente e aproximar-se de sua boca esfacelada, por onde Sandra repetia a mesma frase baixinho, como um mantra: “Deixa ele longe… Deixa ele longe…”.

Horas se passaram até Thomas ser informado do acidente. A chuva havia amainado, tornando-se uma fina neblina prateada. Ele saltou para fora do carro e correu para dentro do hospital, procurando aos berros por sua esposa e filho; invadindo o corredor frio e mal iluminado, em passadas tão largas que fizeram suas pernas arderem em chamas. As poucas lâmpadas fluorescentes acima traçavam uma reta em direção à porta da sala de emergências, enquanto emanavam um brilho esverdeado asqueroso, que por pouco não era percebido apenas sentido no fundo do estômago e traduzido pelo corpo no suor frio  e pegajoso das juntas e nos pelos eriçados da nuca. Thomas teria atravessado por aquelas portas e descoberto por si só os horrores que habitavam no outro lado, não fosse por dois agentes da polícia segurando-lhe os ombros e o arrastando de volta para o saguão do hospital. Ele berrava como um animal em fúria: “Me larguem, filhos da puta! Eu preciso entrar! Eu preciso ver!”

Os agentes levaram Thomas até uma área mais vazia e sentaram-no em um dos quatro assentos de um banco de ferro gelado. Se apresentaram com cansaço evidente; um deles sentou ao seu lado e ambos começaram um questionário breve e superficial. As vozes pareciam abafadas, como se todos estivessem debaixo d’água, enquanto Thomas encarava em silêncio o reflexo do mundo no chão de porcelanato branco recém encerado. Quanto mais distante do piso, mais turva era a imagem refletida, ao ponto do alto das paredes e do teto sumirem em um borrão plácido infinitamente profundo. Era como mergulhar em alto mar e encarar a vastidão morta do abismo oceânico, notando a gradativa morte da luz em direção à escuridão das profundezas. Foi então que o abismo encarou de volta, na forma de um vulto negro que, pelas dimensões do reflexo, pairava sobre eles, pendurado no teto. Antes que alguém pudesse concretizar o impulso de olhar para cima, o vulto disparou para longe com rapidez sobrenatural.

Thomas exclamou e ergueu a cabeça, surpreendendo os agentes. Não havia nada fora do ordinário, nada além de lâmpadas ruidosas, placas de gesso e dutos de ventilação. “Não deveríamos fazer isso agora. Esse cara não conseguiria nos revelar o próprio nome…”, disse o homem de pé, cruzando os braços. O outro, sentado ao lado de Thomas, o examinava em silêncio. 

“Você tem alguma ideia do motivo pelo qual sua mulher entrou naquele carro com seu filho e saiu em disparada de madrugada?”

Thomas parecia ter despertado do torpor como num passe de mágica. Ele examinou o agente parado de pé à sua frente e lutou para esconder a surpresa ao notar, no antebraço esquerdo do homem, uma tatuagem que lhe pareceu familiar. 

“Ela disse que ia pra casa da irmã…”, ele mentiu enquanto virava o rosto em direção ao policial sentado a seu lado. Ao fazê-lo, seus olhos encontraram com os de um homem ferido, de tala no braço, sentado em um conjunto de bancos distantes, cuja presença havia passado tão desapercebida que Thomas cogitou ser o segundo encontro fantasmagórico da noite. Então o policial de pé virou para trás e acenou com a cabeça para a figura distante e qualquer dúvida quanto a sua materialidade foi silenciosamente respondida. Encarando o policial ao seu lado, perguntou: “Foi ele?”

“Foi ele quem chamou os primeiros socorros para o local,” respondeu o agente de pronto, “e quem também nos alertou sobre você.” 

Thomas permaneceu em silêncio, de cenho franzido, e ameaçou uma resposta quando pisadas altas e estaladas ecoaram pelo salão, chamando a atenção de todos. Uma mulher de jaleco veio na direção deles e se apresentou como a cirurgiã responsável pelo turno. Ela pediu aos policiais por um momento de privacidade e eles cederam após uma breve resistência. 

“Como ela está?”, Thomas perguntou de pronto. 

A médica sentou no banco, fazendo uma careta por conta do toque gelado do metal. Há muitos anos, em um momento parecido, ela não havia conseguido segurar o choro. Ainda agora sentia aquele mesmo aperto no estômago e a mesma dormência crescente nos pés, mas reuniu forças e seguiu adiante como havia treinado por tanto tempo: “Eu sinto muito, Thomas, mas não conseguimos salvá-la.”

“E o garoto?”

“Sinceramente, é um milagre. No local já havia sido reportado que as ferragens tinham apenas envolvido seu filho, porém em algum momento da colisão ele deve ter batido com a testa, criando um ferimento bem superficial. Vamos mantê-lo sob observação, mas arrisco dizer que ele sairá dessa apenas com uma pequena cicatriz.” 

Thomas a encarou de olhos marejados. 

“De fato, um milagre.” Então olhou em direção ao homem sentado do outro lado do salão e continuou: “Ele está bêbado? Dormiu?” 

Durante todo o tempo, o homem ferido permanecia imóvel, encarando o próprio reflexo no piso. Porventura ousou erguer a cabeça e se assustou ao olhar novamente para Thomas. Naquele momento, ambos sentiram aquilo que não pode ser nomeado, nem compreendido. Um tremeu como uma presa indefesa, enquanto o outro sentia sede de sangue. O homem então levantou-se do assento e rumou para fora do hospital. Thomas avançou em um impulso para levantar e segui-lo. A médica percebeu.

“Vim assim que pude, para informá-lo do óbito. Senti que devia…”, ela disse, morosa enquanto checava as horas em seu relógio de pulso. “Seu filho permanece estável e receberá toda a atenção e cuidado.” Ergueu-se do banco e encarou os agentes da polícia parados ao lado de um bebedouro ao longe. “Vou chamá-los novamente.” 

Ela mal deu o primeiro passo, quando Thomas chamou por sua atenção uma última vez: “Eu preciso de ajuda. Não tenho ideia do que fazer agora.” 

“Já estamos providenciando toda a papelada necessária e temos contatos que te ajudarão com toda a burocracia…” 

“Eu não falo disso”, interrompeu ele, “eu não sei como devo seguir. O que faço com essa criança?”

A médica encarou seu reflexo no espelho dos olhos de Thomas, respirou fundo, estalou os dedos de uma mão e por entre dentes cerrados disse: “Apenas ame ele. Loucamente.” Então se virou e partiu em direção aos policiais. Se tivesse, por um acaso, olhado por cima do ombro dois segundos depois, não encontraria mais Thomas sentado no banco, nem ninguém vivo que ousasse permanecer naquele salão frio. Apenas uma sombra teria chamado sua atenção, deslocada, em um canto afastado. Atrairia  sua atenção por não possuir qualquer fonte aparente; por não parecer de fato imóvel, mas sim tentando permanecer estática a fim de não ser percebida. E por, afinal, possuir formato claramente humanoide.

O homem ferido aguardava na calçada em frente ao hospital por uma condução, de cigarro na boca e celular na mão hábil. A chuva havia cessado, restando apenas o frio úmido e o som de goteiras pingando sobre poças. O ruído de um único carro, muito longe, era a única lembrança de vida naquela cidade. O homem deu uma longa tragada e expirou a fumaça enquanto batia o queixo e começou a esfregar o braço com a tala para se aquecer, por impulso, se arrependendo imediatamente diante da dor que se seguiu. Ele havia fechado os olhos ao sentir a fisgada no braço e quando voltou a abri-los encontrou Thomas caminhando em sua direção. Sem saber ao certo o porquê, o homem ferido imediatamente virou para a direção contrária e uma perseguição tomou forma nas ruas desertas daquela madrugada. 

O que começou como uma ameaça velada escalou cada vez mais até tornar-se uma caçada mortal. O homem ferido começou a correr a partir da primeira esquina virada, procurando despistar Thomas ao levá-lo para dentro de um complexo de ruelas antigas, as passadas apressadas de ambos reverberando pela cidade oculta. Mas, em pouco tempo, ficou claro que não havia como ganhar distância suficiente para se safar. A cada nova esquina atravessada, ele espiava por cima do ombro e percebia o borrão de Thomas vindo logo atrás.

Foi numa dessas olhadas que se chocou com um poste de iluminação, rodopiando violentamente antes de atingir o chão com o braço ferido. Urrou de dor, o eco fazendo toda aquela parte da cidade berrar junto. Tão logo Thomas surgiu em cima dele, sentando sobre seu tronco e o espancando com uma saraivada selvagem de golpes; apenas erguia os punhos o mais alto que podia, para então despencá-los com toda sua força em direção ao rosto do homem, fazendo sua cabeça quicar na calçada de concreto molhada e imunda a cada golpe. “Você tem ideia do que fez? Sabe quem matou? Seu desgraçado! Você arruinou tudo!” Diferentemente do local do acidente mais cedo, nenhuma janela se iluminou, nenhuma alma ousou olhar para fora e assistir à morte. “Por favor…” foi a única coisa que o outro conseguiu proferir antes de desmaiar com um golpe certeiro na maçã do rosto. Os sons eram horripilantes.

Thomas interrompeu o massacre e passou a encarar a figura arruinada, enquanto lutava para retomar o fôlego. Foi então que pôde ouvir o som de pneus sobre o asfalto molhado e percebeu o clarão dos faróis de um carro virando a esquina e iluminando o local, tingindo a cena com um sangue mais rubro e criando longas sombras, que corriam pelo chão e subiam pelas fachadas dos prédios ao redor. O carro estacionou a poucos metros e de dentro dele saltaram os dois agentes da polícia. O motorista parou de pé atrás da porta aberta do carro, lançando um braço acima do metal frio e molhado, com uma pistola em punho: “Mãos pra cima! Alexandre, encosta ele!”

Thomas pôde ver a sombra do agente se aproximando, cobrindo cada vez mais o corpo inerte adiante, se perguntando: “Como uma vida tão boa pôde terminar desta maneira?”. Enquanto uma voz ressoava em sua mente, uma voz que não parecia ser sua, que dizia: “Isto não termina aqui.” 

O policial segurou nos seus pulsos com firmeza e forçou os braços para trás em uma postura dolorida. Algo aconteceu que Thomas não esperava. Um milagre. Os dois homens se encararam por um segundo e Alexandre sorriu, acenando levemente com a cabeça, antes de virar para trás e berrar: “Deixei minhas algemas dentro do carro!” 

“Puta que pariu…”, enquanto o outro policial se curvava por cima dos assentos e abria o porta-luvas, sacando de dentro dele um par de algemas. “Segura ele até eu…” Ao se reerguer, percebeu que não havia mais Alexandre ou Thomas à vista, apenas o corpo inerte, arruinado, largado na sarjeta . “Alexan–”

Alexandre surgiu pelas costas do policial e envolveu sua garganta com um braço, cortando sua respiração. Thomas correu das sombras e agarrou com toda a força as pernas espasmódicas do homem. Não muito longe dali, um gato malhado surgiu da escuridão e caminhou lentamente em direção à luta. O animal sentou e assistiu atentamente o policial se debater cada vez menos, com menos força. Cortando o silêncio da noite, podia-se ouvir o ar remanescente dos pulmões arranhando as pregas vocais e o tímido murmúrio de ronrons, até que em determinado momento não se ouviu mais nada. Thomas e Alexandre largaram o corpo do policial, que despencou ruidosamente sobre o asfalto. O gato se assustou e correu de volta para as sombras. Os sobreviventes se encararam, retomando o fôlego. 

“Realmente, vocês estão por toda parte. Bom saber que ainda posso contar com isso.”

“Mas não abuse da sorte…”, respondeu o policial de pronto, com pesar evidente. “Eu sinto muito, aliás. Fui designado para tomar conta de vocês e falhei.”

“Ninguém aqui pode se culpar. Não tinha como imaginar essa situação.”

“E a criança?”

Thomas, pego desprevenido, encarou Alexandre no fundo dos olhos: “Não. Não, ele nasceu algumas horas antes.”

“Hm… Menos mal.”, respondeu o outro, franzindo o cenho. “Bom… Tudo a todos que querem!”

“Tudo a todos que querem.”

Pássaros cantavam, insetos zuniam e o sol começava a surgir no horizonte dourado. Em um local distante, longe de qualquer resquício de civilização, um carro policial partiu por uma estrada de terra, se distanciando de uma clareira onde destacava-se um amontoado de pedaços de madeira fumegantes, terra revirada e os resquícios de corpos carbonizados.

Continua —

A Barata

Até hoje, eu nunca tinha me imaginado como uma pessoa louca, descompassada. Excêntrico, talvez; diferente das outras crianças no colégio, de fato; nunca entendi o porquê de correr atrás de bolas, trocar socos e xingamentos. E até hoje tenho dificuldades de entender o que há de tão errado comigo. Quando me olho no espelho vejo o semblante de alguém normal, mas nos reflexos dos olhos das pessoas meus contornos parecem tomar formas diferentes, distorcidas. Por vezes imagino perceber nos outros a tensão nos músculos, os pelos ouriçados, o leve franzir dos cenhos quando finalmente me torno o centro das atenções, e anos de prática me ensinaram a lidar com isso sem mais recorrer a simulações toscas de enjoos e engasgos.

Me parece mais fácil, agora, encarar o passado e todos os momentos que compartimentalizei ao longo dos anos: uma criança me chutou os culhões, sem más intenções, no meio de um exercício de prática de futebol, e eu exagerei os efeitos da dor, afim de brincar com a situação, rolando no chão com uma careta exagerada e dizendo “Assassino, assassino”. O menino chorou desesperadamente, sentindo-se terrivelmente ofendido. Ninguém riu. Anos mais tarde, já em outra cidade e outro colégio, um amiguinho cujo nome e fisionomia me escapam da memória surge na minha frente para um anúncio muito importante: Ricardo, não mais eu, era seu melhor amigo a partir daquele dia. Ao perguntar por um motivo, fui agraciado com a verdade crua das respostas das crianças, “Porque ele é mais legal.”. Lembro de a sombra do rapaz sumir da minha frente e então mais nada. Um piscar de olhos me arremessa de volta para minha juventude, quando Renan, um demônio estúpido mais forte e cruel do que eu, farejou meu medo e tomou minha vida de assalto, forçando seus caprichos e humilhações diárias em troca de uma aparente superioridade, sempre sob a promessa constante de violência brutal caso uma ordem fosse desobedecida, um xingamento respondido à altura. Mas o que mais me dói é a memória do rosto de Juliana, uma antiga colega que agora penso ter sido apaixonada por mim, assistindo a um desses episódios deploráveis de ofensas terríveis e tentando esconder a raiva estampada em seu rosto. Raiva não de Renan, meu grande professor de todas as coisas tristes da vida, mas de mim. De mim, por nunca ter reagido, nunca ter lutado a grande luta. Nem mesmo desferido um patético soco.

Há muitas mais de onde essas vieram, e nos tempos quando ainda conseguia conversar com alguém geralmente arrancava risadas, ainda que irônicas, quando dizia que estas eram minhas únicas memórias de vida. Eu sei que viajei um bocado, tenho ciência das paisagens românticas que já vi desabrochando sobre o entardecer dourado e rosa deste mundo, mas estas são as minhas únicas memórias e não há como fugir disso. Tanto que não me preocupo mais sobre ter aproveitado as oportunidades que sinto ter desperdiçado, pois tenho em mente agora que vivi a vida que tive de viver.

Há sete meses permaneço trancado dentro do meu apartamento, localizado em uma área nobre do Rio de Janeiro, trocando confidências somente com meus livros, meus filmes e meu gato. Já era de meu costume livrar-me de festejos e aglomerações, de arranjar desculpas para me ausentar dos bares marcados pelos colegas de trabalho, até chegar ao ponto extremamente confuso de não ser mais convocado para atividade alguma, por ninguém. Confuso porque me fazia sentir ao mesmo tempo confortável e enervado. O nervosismo, então, foi dando lugar à paranoia, e desde que perdi meu emprego por faltar mais de quatro dias seguidos em meio a um surto psicótico que me rendeu acamado, febril e delirante, não encontrei motivo bom o suficiente para atravessar aquele portal e pôr os pés novamente naquela sarjeta imunda e sem fim, tantos andares abaixo.

Tomava banhos de sol na varanda enquanto saboreava meu café quente logo pela manhã, finalmente pude começar a ler a enorme coleção que venho nutrindo há tantos anos e continuei recebendo encomendas quase diárias dos suprimentos necessários para manter a constituição, minha e do gato, que entre um descanso e outro apenas arranjava tempo para se espreguiçar e caminhar lentamente atrás de um novo lugar para adormecer em paz. Em suma, minha vida vinha seguindo o seu aparente rumo natural, ainda que moroso e fundamentalmente solitário. Eu já arriscava, inclusive, encarar minha separação do resto do mundo com certo orgulho, enxergando em minha dedicação alguma espécie de talento prodigioso. Minha vocação. E então a loucura tomou conta.

Os últimos dias têm sido quentes e secos, o barulho da cidade abaixo e ao redor, incessante. Há duas noites, enquanto terminava de lavar a louça da janta, pude notar pela visão periférica o trajeto que um diminuto ponto negro percorria na parede da cozinha, a uma jarda de distância. As lembranças ainda me são claras, imediatas, tanto do som da água despejada pela torneira batendo no latão da pia abaixo quanto da luz fluorescente esverdeada, o brilho mais intenso, mais branco, reluzindo na carapaça lisa de uma pequena barata. Lembro de ambos imóveis, apenas aquelas antenas asquerosas arriscando revelar-se com vida, erráticas, minúsculas e finas como fios de cabelo negro. Procurei de imediato por algo em meu alcance que pudesse usar para esmagar aquela pequena aberração, mas nada me pareceu de útil a tempo de a barata voltar a se mover, agora correndo apressada em direção dos armários suspensos na parede da cozinha e do estreito vão entre a madeira do móvel e o ladrilho. Com a mesma mão que segurava a esponja encharcada tentei socá-la, sem sucesso. Fiquei apenas com o punho avermelhado e dolorido, enquanto a barata refugiou-se na escuridão inalcançável do vão, uma verdadeira fenda diante de sua pequeneza. Xinguei e imaginei a podridão bolorenta onde a criatura havia adentrado, mas enfim terminei minha tarefa e desisti de esperar por qualquer sinal da barata, depositando toda a responsabilidade de arcar com aquela situação em meu gato, que vez ou outra já tinha se mostrado capaz de lidar com pestes maiores e mais horripilantes que aquele pequeno ponto preto, do tamanho de um botão, deveras inofensivo.

Passei o resto da noite na sala assistindo a programas desinteressantes, mas de olhos e ouvidos atentos, pois mais de uma vez pensei escutar sons inusitados vindos da cozinha. Nada além pode ser descrito do que estalos secos, como finas ripas de madeira envergando até romper suas fibras. A partir do som, que se repetiu espaçadamente por algumas horas, eu pude imaginar finos ligamentos de carapaça, longos probócitos tentaculares e patas gélidas repletas de pelos. Quem me deixou ainda mais nervoso, por sua inquietude nada habitual, foi também meu gato, que se aninhou em meu colo e, tal como eu, encarava a penumbra além do portal da cozinha toda vez que aquele som se repetia. E agora agradeço a tudo o que for de mais santo, neste mundo e no outro, por este gato, pois foi ele quem, com sibilar agressivo, me acordou de uma soneca desmedida sobre o sofá da sala a tempo de testemunhar aquela dança das sombras escapando da cozinha, duas hastes longas e finas dardejando a ermo em direção da sala, fazendo lembrar nada além de um gigantesco par de antenas. Até então ainda tomado pelo torpor do sono, balbuciei alto qualquer maldição ininteligível que pareceu interferir diretamente naquela visão grotesca e com um rápido recuo, em um piscar de olhos, aquelas coisas não mais podiam ser vistas.

Levei um certo tempo até criar a coragem necessária para levantar do sofá e caminhar até a cozinha, ligando a luz assim que me vi dentro daquele corredor estreito e no fim sem encontrar qualquer coisa fora do comum. Permaneci imóvel, encarando cada canto, cada superfície, pensando sobre finalmente tomar uma decisão quanto a minha atual situação de isolamento autoimposto, divagando sobre as distâncias entre as realidades objetivas e subjetivas que minha mente parecia ter criado depois de tanto tempo forçada a trabalhar com as mesmas visões, os mesmos sons e estímulos. De súbito uma onda de tristeza me abateu e tão logo após me certificar da segurança do local, caminhei lentamente em direção do meu quarto, arrastando os pés e chamando pelo gato para que me acompanhasse, estalando os dedos de uma mão.

Naquela primeira noite fui assolado por demônios em meus pesadelos, visões nefastas e distorcidas de lugares familiares, próximos. Mas o que certamente mais me marcou foram os devaneios envolvendo deformações corpóreas e mutilações que punham em xeque os limites da carne. Acordei sobressaltado, encharcado de suor e arfando ruidosamente enquanto me sentava sobre a cama e massageava o gato, que tão logo despertou de seu próprio sono e veio me acariciar de corpo inteiro, ronronando baixinho. Ainda me é fresca a memória do último sonho daquela noite, o que me fez acordar com tamanha violência. Nele, me encontrava parado de frente para a cozinha, envolto de uma escuridão quase total. Aos meus pés, meu gato corria em disparada, alternando entre dois pontos: onde eu permanecia imóvel, de pé, e algum lugar mais distante no apartamento às minhas costas. Ele ia e voltava, ia e vinha, incessantemente, até que finalmente decidi olhar por cima do ombro e acompanhar seu trajeto sem sentido aparente. E ao mirar a distância restante do apartamento até a parede oposta, meu estômago revirou com a visão daquele par de olhos terríveis, selvagens, me encarando de dentro do meu quarto através da porta entreaberta. Da escuridão daquele quarto meu gato partiu em disparada vindo em minha direção, e uma mão com dedos longos e ossudos surgiu das trevas e agarrou lentamente a madeira da porta.

Mesmo após acordar, não tive tempo suficiente para me recuperar. Envolvidos na escuridão da noite, no silêncio sepulcral da cidade, meu bichano e eu fomos surpreendidos pelo som de batidas arrastadas na porta. Permaneci imóvel, em silêncio, sorvendo aqueles segundos como se fossem horas, enquanto o gato se eriçava e rosnava ferozmente. Eu sei do potencial criativo que uma mente exausta é capaz, em especial logo após um sono perturbado, e mais de uma vez em minha vida me encontrei em momentos de total confusão quanto a materialidade do mundo ao meu redor, em situações parecidas. Mas algo naqueles ruídos lancinantes despertava uma qualidade diferente de qualquer outra alucinação que jamais me dei conta. As características daquele som, daquele arranhar da madeira, da tinta antiga e gasta, da textura da porta sendo interferida violentamente, tudo aquilo me pareceu complexo e alienígena demais para justificar como apenas criações de uma mente confusa. Foi então que decidi tomar iniciativa, levantando da cama e caminhando em direção da porta do quarto.

Tão logo comecei o lento percurso, fazendo o piso de madeira ranger suavemente a cada passo, o som cessou. Me confirmaria a loucura que tanto suspeito se dissesse que não ouvi imediatamente o tamborilar pesado de incontáveis passos do outro lado da porta. Segurei a maçaneta e, suspirando alto, a girei com rapidez e parti para o corredor com violência, afim de tanto assustar qualquer entidade que não contasse com minha astúcia quanto que para elucidar aquele mistério de uma vez por todas.

A poucos metros de distância, estirada no chão da sala. A barata havia crescido, de alguma forma, chegando às dimensões aproximadas de um cão de médio porte. Seu corpanzil reluzente e bulboso refletia as luzes da cidade que invadiam o apartamento escuro em um espelho negro. Suas presas mastigavam o ar e pingavam um líquido claro e viscoso, que já formava uma poça no chão logo abaixo. As antenas apontavam para todas as direções. Eu desmaiei, e acordei horas mais tarde com o calor do sol da manhã e nenhum sinal do monstro. Ao fazer força para descolar as costas doloridas do piso amadeirado, me assustei terrivelmente com um guincho alto e repentino. Apenas de lembrar, sinto meu estômago revirando, meu coração quase escapando pela boca.

Meu pobre gato, meu fiel companheiro, feriu-se gravemente em algum momento ao longo da noite. Ele jazia deitado a poucos metros de distância, choramingando em cima de uma poça de sangue. Sobre sua coxa esquerda, exposta como que em um pedido de socorro, duas feridas perfuradas reluziam, cobertas de sangue coagulado. Nesse momento, ouso abrilhantar o relato com caprichos de prosa, pois realmente não lembro de como deixei o apartamento com o animal ferido em braços. Como em uma viagem astral, assisti meu eu percorrendo a distância até a emergência veterinária mais próxima e implorando por ajuda. Me disseram que o estado do meu guardião é estável e que uma recuperação total é prevista. Não sei o que restaria de mim, com este gato se perdendo em uma circunstância tão aterrorizante. Tive que mentir para os médicos, contando de um acidente fictício graças a uma queda de um lugar alto, e a julgar pelas suas expressões acredito que ganhei a confiança deles. Muito provavelmente fora o desespero com o qual entrei no local, ainda de roupas de dormir e descalço.

O meu estado deplorável e o acidente terrível com o gato me puseram a novamente pensar sobre as condições na qual vivo há tanto tempo, e lembro de promessas enfáticas de mudança, de assumir responsabilidade e procurar qualquer tipo de tratamento adequado a alguém que chegasse ao nível de pôr uma vida em risco graças a visões e devaneios alucinados. Entrei em contato com uma médica psiquiátrica e marquei uma consulta para semana que vem, me sentindo bastante realizado. Logo depois vasculhei pelo apartamento inteiro por qualquer prova da existência daquele monstro asqueroso que havia nos enfrentado na noite anterior, sem sucesso. Me condecorei com uma medalha imaginária, por conseguir distinguir o real do sonho e por perceber a tempo a necessidade de ajuda. O sol sumiu por detrás dos morros altos que defrontam a minha janela e passei a noite procrastinando em busca de aliviar a mente e ignorar qualquer dúvida que surgisse em relação ao estado de saúde do meu bicho de estimação. Tão logo o noticiário da madrugada surgiu na televisão, meu corpo desligou e adormeci exausto no sofá da sala.

Engraçado como as coisas são. Lembro agora de mais uma memória da juventude, algo tão antigo e tão marcante que orquestrou um efeito justamente contrário, mascarando sua presença em meu subconsciente e se escondendo em meio a tantas outras lembranças, ainda que sempre forçando em meu âmago um distinto e paralisante pavor de insetos. Sou uma criança minúscula, há pouco um bebê. Uma barata voa para dentro da casa pela janela aberta em uma noite quente e aterrissa no meu braço. Ela caminha rapidamente para dentro de minha boca. Eu a engulo.

O céu amanheceu bizarro esta manhã, o seu calor me despertando quase que imediatamente após os primeiros raios adentrarem pela janela da sala. Em meu braço percebo uma pequena ferida coagulada, um rasgo na pele que, ao ser forçado, revelou-se profundo e dolorido, penetrando no músculo. Ao longo do dia inteiro sinto uma coceira por debaixo da pele, incessante, que misteriosamente parece mudar de posição, percorrendo diferentes partes do meu corpo. Me deparo rindo por minutos a fio de frente para o espelho, pois isso me faz pensar na barata.