Somente após a enfática cobrança do doutor Renfield, além de inúmeros debates silenciosos com minha própria sombra, é que me sinto confortável o suficiente para descrever em prosa os segredos que guardo na memória. A solidão aqui é perversa, e a vida tornou-se uma grande punição. Todos que me rodeiam pregam, efusivos, quanto às qualidades de viver e existir, mas não fazem ideia da ignorância na qual escolheram meandrar. Sinto-me perdida em meio à crianças tolas, que lutam para me acorrentar em sua estupidez, tendo já realizado o que há para além deste corpo, desta vã sensação de importância que os médicos e enfermeiras teimam em tentar resgatar. Posso falar mais de mil vezes, mas percebo que jamais entenderão, que a visão que tenho da janela do meu quarto vai além dos jardins bem cuidados e dos campos que cercam este sanatório, e se posso contribuir com alguma coisa para este mundo cinzento é com a certeza de que não estou louca. Se não de minha própria boca, então, que façamos valer o peso da palavra escrita e do entendimento que a poética decerto é capaz de trazer.
Faço deste o sumo de meu testamento: Há um espaço entre os espaços, um limiar entre a cortina prateada deste mundo e o que há além. E eu apenas fui corajosa o suficiente para perscrutá-lo.
Desde tenra infância, me recordo habitando estas regiões da Providence vitoriana. Caminhava pelas avenidas largas e admirava as frondosas fachadas dos casarões, que pareciam tão antigos e cheios de história e significado, que poderiam muito bem ser confundidos com quaisquer outras formações geológicas específicas daquele solo úmido, arroxeado. A casa de minha família era uma das mais elusivas, distante dos bairros mais abastados, mas pertencente a um imenso lote de beleza natural inigualável. A paisagem bucólica que me desafia, além da janela, nesta casa de recuperação em Letchworth, esmaece perante as minhas memórias como uma pintura de um estudante de faculdade decerto deve se sentir perante às obras-primas de Michelangelo. Lembro de uma infância sorridente, onde meus primos e eu brincávamos e corríamos por inúmeros córregos, cachoeiras, bosques e clareiras, que meu querido avô contava terem sido esculpidos na natureza selvagem pelos próprios índios originários desta terra, centenas de anos antes.
Minha família sempre foi muito grande, muito unida e carinhosa. Graças aos anos de trabalho em minas de prata descobertas pela imensidão do Alaska indomado, o pai de minha mãe e seu achado valioso deram início a uma verdadeira era de ouro para a nossa Casa, que aproveitou do melhor que a riqueza poderia oferecer. Os motivos para festividades eram constantes, repletas de comidas exóticas e vinhos de valor inestimável; os automóveis mais deslumbrantes a desfilar pelas ruas de toda Providence teimavam em ser os nossos; fomos uma das primeiras residências a possuir eletricidade em toda a região, e os aniversários das crianças pequenas tornavam-se verdadeiros eventos, dignos das capas dos periódicos. A influência de meu avô começou a ser sentida nos mais diversos aspectos na região, sobretudo na política. Foi com surpresa, porém, que nos foi noticiado o falecimento do bom homem, acertado por um carro desgovernado enquanto caminhava pela calçada, de noite, voltando para casa.
Sua caridade não conhecia limites, e o seu trabalho em cuidar para que cada descendente desfrutasse de sua riqueza foi impecável. O que mais nos afetou, de cara, foi o impacto que sua ausência causou em minha avó, sua esposa. A pobre mulher, antes vivaz e faceira, agora parecia ter abandonado a vida; percorria pelos corredores da grande mansão, solitária, sempre à noite, envolta de vestes negras e de rosto protegido por um véu cinzento. Os meses se passaram sem que a víssemos novamente, até que a notícia de sua morte acometeu a todos. Minha mãe nunca admitiu, mas com tempo descobri que aquela doce senhora, antes tão alegre e espirituosa, havia partido de madrugada em direção aos bosques que circundavam nosso terreno e se enforcado.
Minha infância seguiu sem grandes eventos, ainda que estas perdas tenham causado transformações dramáticas tanto em minha formação quanto nas mentes de meus jovens primos e primas. Ainda que nossos pais se esforçassem para que as festas fossem frequentes e maravilhosas, a maioria das noites passávamos em claro, escutando uma sinfonia de choros desesperados e gritos de horror, quando eventualmente um terror noturno nos tomava o sono. Foi pensando, provavelmente, em nos livrar desta maldição de tola cobiça do luto e da morte, que nós fomos presenteados em determinado Natal, quando já havia completado doze anos de vida, com a sorte mais adorável de bichinhos de estimação. Uns ganharam gatinhos dóceis e manhosos, que miavam alto por qualquer motivo, enquanto outros foram agraciados com os filhotes de cães mais felizes e animados os quais já conheci. A minha cadela labradora chamava-se Lucy, e eu a tratava como uma verdadeira donzela, a paparicando e escovando seu pelo alvo como que numa obsessão, para o desespero de minha mãe. Por sorte, meu rendimento nos estudos não foi atrapalhado pelo presente maravilhoso, que até hoje me é motivo para lágrimas de felicidades idas.
Corríamos juntas pelo campo da propriedade, brincando na grama florida da primavera e nadando nos riachos no alto verão. No outono, rolávamos pelo grande tapete de folhas secas dos jardins e pomares, e no inverno gostávamos de dormir abraçadas no tapete persa do grande salão, nos aquecendo à luz da lareira, sempre vigiadas por nossos pais. Foi como a irmã que nunca tive, e em poucos momentos nesta vida me senti tão amada e feliz.
Vivemos uma vida boa juntos, minha família e minha labradora companheira, e ao longo da minha juventude, aquelas distantes memórias de riso e amor irremediáveis pareciam ter voltado, como se nunca tivessem nos deixado. Foi próximo de meu vigésimo aniversário, perto da conclusão de meus estudos, com o prospecto de ingresso nalguma faculdade de renome na Nova Inglaterra, quando nos foi revelado o que todos temiam, mas jamais permitiram expor: os espólios de meu avô conseguiram nos sustentar até determinado ponto, mas agora o montante estava próximo do fim e, por consequência, a nossa despedida daquela casa e daquelas terras, onde tanto havia acontecido e nos marcado, era eminente.
Todos nossos planos foram adiados, enquanto tentávamos descobrir o que fazer de nossas vidas. Não demorou muito para que meus pais encontrassem uma nova fonte de renda e um novo lugar para chamarmos de lar. Ele continuaria com os esforços em um dos empreendimentos da família, administrando uma filial da siderúrgica de meu avô em Nova Iorque. Minha mãe havia encontrado uma oportunidade de voltar a lecionar para o ensino básico, e me foi assegurado que minhas inclinações artísticas teriam seu espaço e liberdades garantidos em nosso recomeço. A ideia de deixar para trás toda aquela beleza natural me parecia impensável, mas nunca me permiti tais anseios frívolos e de pronto concordei em auxiliar meus pais naquela nova etapa em nossas vidas.
Foi durante o processo de mudança, porém, enquanto trabalhávamos ao longo de semanas para organizar tudo o que de fato levaríamos conosco e o que venderíamos para criar uma poupança inicial de segurança, que encontrei um estranho envelope antigo, de papel amarelado e amassado, já aberto, escondido entre duas ripas de madeira no armário de minha mãe. Estranho por conta de seu esconderijo, de seu estado avançado de deterioração e por logo notar em seu verso a caligrafia de minha falecida avó. Quase realizei o impulso de chamar pela minha mãe e entregá-la o documento, não fosse um aviso escrito em inglês claro, sob a marca de um antigo lacre de cera já destacado: “Para minha querida neta Amanda.”
Encarei o envelope pelo o que pareceu muito tempo, perdida nas implicações confusas que aquele documento trazia. Por que minha mãe me ocultou estas últimas palavras de minha avó, sabendo o quanto eu a amava e por quanto tempo sonhei em reaver qualquer contato com ela, por mais macabro que seja um relato póstumo. O que haveria de tão perigoso naquela mensagem, que merecia permanecer escondida e esquecida por mais de uma década em um lugar que eu jamais imaginaria encontrar. Decidi retirar o papel que havia dentro do envelope e ler a mensagem endereçada a mim, há tantos anos. Nela, minha avó dizia:
“Não tema a vida, tão cheia de amores, pois a morte é só o princípio. Um grande respiro que todos devemos dar, antes de emergir do outro lado. Mergulhe nas trevas. Siga o caminho de pedra que leva até a torre. Não tenha medo. Mergulhe.”
Sinto agora o mesmo efeito que aquelas palavras me surtiram pela primeira vez, tantos anos atras; um raio percorrendo pela espinha, enquanto o estômago parece ter congelado. Entendi, naquele mesmo instante, o porquê de minha mãe querer esconder aquela carta por tantos anos. A julgar pelo estado do documento e o material daquela mensagem, deve ter sido algo produzido pouquíssimo tempo antes de seu suicídio misterioso, e com certeza teria sido algo que perturbaria a mente já debilitada de uma jovem menina, tomada pela tristeza e luto. Nunca revelei a descoberta daquele dia para minha mãe, simplesmente guardando a carta no meu vestido e continuando com a mudança.
E foi como se uma maldição tivesse sido rogada, pois em menos de uma semana após pôr os olhos no conteúdo daquela carta, a minha doce Lucy veio a falecer subitamente, por conta da velhice avançada. Foi uma dor excruciante, um sofrimento terrível que me recuso a discorrer sobre em maiores detalhes. As semanas que se seguiram foram um pesadelo encarnado, repletos de uma dor que por nada parecia oferecer trégua.
E qual não foi minha surpresa, quando na décima terceira manhã após sua morte, escutei um choro peculiar e os sons de garras arranhando a madeira da porta principal? Disparei da cama e desci as escadas em direção ao primeiro andar, onde meus tios se debruçavam para além da porta aberta, cochichando algo em meio à penumbra, que ainda não havia sido penetrada pelos raios de sol da manhã. Ao alcançar o nível do solo, perguntei sobre os estranhos sons que pensei ter ouvido, sons que me lembravam minha doce e fiel companheira, quando meu tio abre caminho para que Lucy, em carne e osso, desfilasse para dentro da casa e caminhasse lentamente em minha direção. Até hoje lembro do espanto de todos, da estranheza daquela visão, mas igualmente do amor irrefreável que senti ao reencontrar minha grande amiga. Não me permiti questionar aquelas visões, aqueles toques, que pareciam todos reais demais para serem apenas um sonho. Meus tios, incrédulos, deixei ainda estáticos no primeiro andar, enquanto levava a dócil cadela para o meu quarto. Deitamos juntas, como costumávamos fazer nos seus últimos dias, e me pus novamente a dormir, esperando me libertar daquele sonho, tão feliz e ao mesmo tempo tão perturbado. Quando acordei, lá estava ela, fazendo uma festa.
Ao longo da semana, todos tentaram conversar comigo sobre o que aconteceu com Lucy, mas me recusava a responder além do que julgava como necessário. Queria apenas viver aquela magia e ignorar qualquer semblante de bruxaria e demonismo que aquele mistério poderia sugerir. Mas enquanto aproveitava as manhãs e tardes com minha labradora, não pude deixar de perceber que, certo tempo após o pôr do sol, o animal simplesmente sumia de vista e retornava para a casa apenas na manhã seguinte, com o pelo sempre repleto de terra e sujeira.
Foi então, numa noite de lua cheia, que decidi ignorar os gritos desesperados de minha versão infantil, que lutava para ignorar qualquer consequência daquele verdadeiro milagre e apenas deixar-se levar por um suposto amor além-vida. Não tirei os olhos de Lucy durante o dia inteiro, e quando o mundo escureceu, pontual como um relógio, a cadela partiu em retirada, em direção à floresta da propriedade, que se mostrava mais sombria a cada minuto. Permiti que Lucy avançasse uma boa distância, tomando cuidado para não despertar qualquer suspeita no animal e, porventura, perdê-lo de vista. Logo notei que o caminho que percorremos, cada vez mais profundo na mata densa, era ladeado por indícios de uma trilha devidamente cortada em meio à vegetação, e quando passamos por uma região onde faltava uma cobertura nas copas das árvores acima, o luar refletiu nas lajotas de pedra que delimitavam nosso percurso. Imediatamente, lembrei-me da mensagem macabra de minha avó e, por mais que lutasse contra a ideia, parecia que agora tudo fazia sentido.
Não lembro por quanto tempo caminhamos na natureza, em meio às sombras e ruídos noturnos, até nos depararmos com uma grande estrutura ciclope, feita de pedra. Uma torre emergia de uma clareira perdida no meio da floresta, e quando olhei para o céu, a luz das estrelas parecia alinhar em direção da edificação monstruosa, que não oferecia qualquer indício de estilo arquitetônico que eu jamais tenha reconhecido antes ou depois.
Lucy não hesitou nem por um segundo, marchando solenemente em direção de uma abertura na torre, grande o suficiente para que nós duas penetrássemos no prédio, que mostrou-se completamente vazio, sem qualquer proteção contra aquela visão demoníaca do céu e dos astros. A cadela deitou lentamente no chão de pedra fria, abaixou a cabeça e, então, cessou qualquer movimento. Me ajoelhei ao seu lado, para impedir que ficasse em contato com aquela superfície gélida por muito tempo, e gritei com o susto que levei ao tocar o seu pelo e sentir absolutamente nada. Minha mão atravessou pela superfície antes física daquele corpo, como se Lucy fosse nada mais do que um pensamento, uma ilusão ótica criada com espelhos e fumaça. Comecei a tremer de pavor, sem conseguir compreender o que meus sentidos tentavam me passar, quando senti algo inacreditavelmente gelado repousando sobre meu ombro direito. Quando consegui encarar, reconheci os contornos inacreditáveis de uma mão que, em algum momento, pôde-se dizer ‘humana’. Minhas pernas bambearam e me senti prestes a desmaiar quando, da escuridão atrás de mim, reconheci uma voz que não ouvia há muitos anos.
“Não tenha medo…”, minha querida avó disse, e naquele momento me pus a chorar copiosamente. Não por tristeza, porém, mas de alegria, porque tinha descoberto que não precisava mais temer um fim que simplesmente não havia. Que a morte era apenas o princípio.
Não me recordo de muita coisa que aconteceu após aquela noite, apenas que Lucy continuou a me visitar diariamente, até nos mudarmos de estado e deixarmos a magia daquela terra para trás. Tendo admitido tudo isto, quero reforçar o uso deste documento por escrito, avaliado pelos meus médicos e enviado para o juizado como prova de minha sanidade. O conhecimento oculto que carrego comigo em vida me permite admirar o equilíbrio entre a existência e a morte de uma maneira única, que julgo permitir-me de uso, quando em momentos de extrema necessidade.
Reforço que foi por isso, e tão somente isso, que me submeti a cenas tão grotescas e perturbadoras tais como foram descritas nos jornais de todo o estado e, imagino, de todo o país. Admito, por meio deste, que violei o mausoléu de minha família e resgatei o cadáver de meu filho recém falecido de seu sono de pedra. Admito que invadi o território de minha antiga propriedade, agora pertencente aos Neugebauer, mas somente para reaver o acesso daquele caminho de pedra perdido na mata e da estranha torre, que me aguarda com suas indescritíveis maravilhas. Admito que cometi todos esses delitos por conta do amor de uma mãe pelo seu pequeno filho, tão covardemente acometido pela cólera e tomado deste mundo sem a chance de ser feliz e amar, como é devido!
Agora me resta clamar pela misericórdia da justiça dos homens, pois o tempo está se esgotando. Faz duas semanas que permaneço trancafiada neste sanatório, e não sei quanto tempo ainda resta para a ressurreição de meu amado Caleb. Por tudo o que é mais sagrado, vos imploro por compaixão para com uma velha mãe, que apenas quer voltar a ver seu filho!